sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

O Jornal, Meaípe, 19 de fevereiro de 2021 Meaípe Arthur Soffiati

Há pessoas consternadas com a erosão costeira em Meaípe. Alguns artigos de jornal manifestam saudosismo pelo tempo em que a praia era um ponto turístico concorrido, com seu hotel e restaurante. Em vários pontos da costa do Brasil, a erosão causada pelo mar está afligindo moradores e despertando saudosismo. Mas os governos estão providenciando sistemas de contenção do mar. Um dos mais icônicos locais é Atafona, na foz do rio Paraíba do Sul, que já foi um conhecido balneário frequentado por turistas que ali tinham mansões, frequentavam um clube que marcou época e chegou mesmo a ter um cassino bastante procurado. Era chique chegar a Atafona de trem e hospedar-se no seu hotel, ao lado das casas pobres dos pescadores. Em Marataízes, a erosão costeira foi sustada com uma grande praia artificial, construída sobre molhes de pedra. Em Meaípe um muro está sendo levantado. Até onde essa solução resistirá não sabemos.
Até 5.100 antes do presente, o nível do mar era bem mais alto. O local em que se ergue atualmente uma Atafona ameaçada sequer existia. Até essa data, o mar invadia o baixo curso do rio Itapemirim e não permitia que Marataízes se erguesse. Mas nenhum desses núcleos urbanos costeiros existia naquele recuado tempo. Os europeus ainda não haviam chegado ao Brasil com sua concepção de concentrações humanas fixas, expansionistas e permanentes. Os povos indígenas estavam mais preparados que os europeus para avançar e recuar de acordo com as transgressões e as regressões marinhas. Reclamamos do mar por estar destruindo lugares de memória que amamos. Ele – o mar –, impiedosamente, está destruindo prédios em que moramos ou que eram pontos de referência de praias. Em algumas, ele está erguendo dunas que nos roubam a visão de paisagens que tanto amamos. Alguns, mais resignados, dizem que o mar está pegando o que é dele, numa simplória concepção de propriedade privada. O mar não é um ser consciente. Não tem a mínima noção de propriedade. Não é mau nem bom. Ele simplesmente é. A nossa história é muito curta em relação à história do planeta. Por várias vezes, o nível do mar subiu e desceu ao longo de milênios. Tudo indica que a atual elevação seja fruto de mudanças climáticas, do aquecimento global que vem derretendo geleiras, causando ressacas e erodindo a zona costeira em vários pontos dos continentes. Agora, assumimos a condição de agentes de transformações profundas. Conheci Meaípe em 1963, quando eu tinha 18 anos. Um caminhoneiro nosso vizinho cuja família era amiga da minha família convenceu meu pai a comprar um terreno na praia capixaba. Fizemos uma longa viagem na carroceria do caminhão, do Rio de Janeiro a Meaípe. Chegando lá, meu pai constatou com espanto e desalento que havia comprado um terreno na encosta de uma elevação pedregosa na ponta esquerda da praia. Havia lá apenas uma colônia de pescadores entre a ponta pedregosa e o pequenino rio Meaípe. Passamos um mês lá em profunda tranquilidade. Voltei a Meaípe nos anos de 1980 e encontrei uma praia bem diferente daquela que conheci 20 anos antes. A colônia de pescadores havia sofrido profundas transformações e Meaípe foi intensamente urbanizada entre o rio e a rodovia do Sol. A urbanização não respeitou a faixa marginal de proteção da praia e do rio. Casas foram erguidas a bem dizer dentro do rio, todas elas lançando esgoto e lixo no pequeno curso d’água. O manguezal que conheci em 1963 e que não me despertava a atenção que me desperta hoje cobria uma área bem maior que a atual. Ele apresentava saúde. Em 1963, meu pai e eu caminhávamos pelas praias desertas de Dairaquara, Bracutia (hoje chamada de Bacutia), Peracanga e Guaibura. Todos elas estão pesadamente urbanizadas atualmente.
Fiz uma viagem ao passado em busca de referências a Meaípe. J.C.R. Milliet de Saint-Adolphe, no “Dicionário geográfico, histórico e descritivo do Império do Brasil” (Paris: Vª J. -P. Aillaud, Guillard e Cª, 1863), dedica um verbete a Meaípe. Ele foi um militar francês eu viveu muitos anos no Brasil, coligindo informações sobre acidentes geográficos e núcleos urbanos. Seu dicionário se reveste de grande importância por registrar lugares que não mais existem. Sobre Meaípe, grafado como Meiaipe, ele escreve: “Povoação da província do Espírito Santo na beira do mar, entre a vila de Benevente e de Guarapari. Os moradores, além dos gêneros de consumo ordinário que cultivam, salgam e secam diversas espécies de pescado, que vendem aos mercadores das cidades de Campos ou aos de Vitória, que vão fazer ali as suas provisões em certo tempo do ano.”
Recuando a 1815, sabemos que o alemão Maximiliano de Wied-Neuwied deve ter passado pela praia de Meaípe vindo da vila de Itapemirim em direção a Vitória e daí rumo a Salvador. Mas ele não deixou nenhum registro de sua passagem por ela. Apenas Guarapari mereceu sua atenção. Em 1818, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire seguiu os passos de Maximiliano, mas fez um registro considerável de Meaípe: “Depois de ter deixado Benevente, caminhei a princípio pela praia; passei muitas vezes pela floresta e desta para aquela e, tendo percorrido 3¹/² léguas em região montanhosa, pontilhada de cabanas, cheguei à Aldeia de Meiaipe, dependente da paróquia de Guarapari e situada à margem de uma enseada; ao norte desta aparece muito considerável grupo de casinhas; além, há outeiros cobertos de mato e diante da aldeia, no mar, surgem recifes negros quase à flor da água. Apesar de os habitantes de Meiaipe se jactarem de ser brancos, reconhece-se logo, sem custo, que a maior parte nem por mistura pertence à raça europeia. Não têm, na verdade, os olhos diferentes e a cor fuliginosa dos indígenas; mas, é de se observar que esses caracteres se perdem, quase sempre, pela preponderância dos brancos e dos índios; aliás, os colonos de Meiaipe têm o peito largo e os ombros sem saliência, como os americanos; sua cabeça é mais volumosa que a dos verdadeiros portugueses, e os ossos da maçã do rosto são mais proeminentes que nos europeus; por fim, a brancura de sua pele tem algo de embaçado e pálido que não se nota nos homens que pertencem inteiramente à raça caucásica. Os habitantes de Meiaipe cultivam um pouco a terra, mas vivem, principalmente, da pesca, muito abundante neste distrito; secam os peixes que apanham e pequenas embarcações vêm de Vitória e de São Salvador dos Campos dos Goitacazes para compra-los.” (“Viagem ao Espírito Santo e rio Doce”. Belo Horizonte: Itatiaia, 1974).
Saint-Hilaire não encontra mais indígenas em Meaípe. Eles se miscigenaram aos brancos e se tornaram mamelucos. Mas ser branco era uma forma de promoção social. Daí, talvez, os moradores de Meaípe se considerarem brancos. No Brasil colonial e imperial, a pesca era atividade praticada por pobres. Normalmente os brancos pobres casam-se com índios. A descrição da praia é bastante fiel. Ainda hoje, nos seus aspectos físicos, encontramos um quadro bastante parecido com aquele que o botânico francês descreveu. O pequeno rio não foi notado pelo ele. A aldeia de pescadores localizava-se na extremidade esquerda da praia, exatamente no ponto em que a encontrei em 1963. É quase certo que o verbete redigido por Saint-Adolphe, em 1863, colhe informações registradas por Saint-Hilaire. Meaípe tinha estreita relação com Campos, então o mais expressivo núcleo urbano entre o Rio de Janeiro e Salvador, como notou Maximiliano de Wied-Neuwied. Essa relação também se estabelecia com Vitória, bem mais próxima da colônia pesqueira. Hoje, as relações entre Meaípe e Campos baseiam-se no turismo.

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