domingo, 29 de janeiro de 2023

A VISÃO DAS PLANTAS

Arthur Soffiati

Da África, chega-nos mais uma vez a voz de Djaimilia Pereira de Almeida pelo breve romance “A visão das plantas” (São Paulo: Todavia, 2021). Breve mas denso. A autora leu num romance a história de um pirata e traficante com passado dos mais truculentos. Ele foi criança como todos nós. Teve mãe dedicada, ao que tudo indica. Mas ganhou o mundo traficando negros para a escravização. Numa viagem em seu navio, ele atirou cal nas pessoas traficadas que lá estavam sendo transportadas e as matou sem a mínima compaixão. Degolou um casal de holandeses com sua filha criança. Depois de velho, o pirata retorna a sua aldeia e se torna um dedicado jardineiro. Lembra da mãe, mas não sente saudades.

Numa passagem das mais fortes, Celestino (é o nome do pirata) narra sua crueldade para meninos curiosos que o visitaram na solidão da sua casa: “Vinde a mim, meninos, a mim que degolei gargantas e durmo o sono dos justos. Quereis saber o que matei? Matei macacos e cavalos. Serpentes, vespas, um elefante. Um crocodilo do tamanho de uma jangada: cortei-o em cinco partes. Matei dez mulheres, a uma delas cortei os pés. Matei um corvo. Raposas, ratazanas. Matei centenas de homens com as minhas mãos e elas não me caíram. Matei os sonhos de um milhar de outros. Queimei cabanas. Um dia, mordi o pescoço dum homem até lhe arrancar as veias para fora. Espetei uma lança no peito de um amigo. Roubei dinheiro. Rebentei o crânio de um albino contra uma rocha. E a seguir esquartejei-o.”

Djaimilia não revela o nome e a localização da aldeia em que Celestino vive seus últimos anos de vida. Ela fica perto do mar, talvez em Portugal. O que conta é a carreira fria e cruel de Celestino. Crueldade sem arrependimento, embora o padre da aldeia tenha lhe oferecido confissão. O mundo colonial português e europeu foi povoado de homens como Celestino. Agora, ele cuida de flores como se tivesse uma vida plácida e generosa. Ela vai se esvaindo. As plantas são indiferentes às pessoas que lhes fazem bem. Elas não se importam com o mundo. Elas não são como o cão, que abana a cauda agradecido pela comida. A maior parte da natureza é indiferente a nós. Não lhe importa se aquele que dela cuida é virtuoso ou assassino. “As plantas não se sentiam agradecidas. Tratavam o seu regador à semelhança da chuva que caía sobre elas nas noites de Outono.” Ele é um jardineiro fiel no fim da vida, mas as plantas lhe são infiéis ou indiferentes.

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