sábado, 28 de janeiro de 2023

O SOM DO RUGIDO DA ONÇA

Arthur Soffiati

Micheliny Verunschk lança, logo no início do ano, o romance “O som do rugido da onça” (São Paulo: Companhia das Letras). A obra lhe custou muita pesquisa. Ela procura mergulhar na mente da menina índia Iñe-e, da nação amazonense miranha. Ela foi levada por Martius para a Europa, juntamente com o menino Juri, sob os protestos de Spix, que considerava essa prática coisa de traficante. Iñe-e e Juri integravam nações inimigas. Vários outros viajantes levaram nativos para a Europa, geralmente comprados. Esses conquistadores e viajantes tinham uma postura etnocêntrica, embora seja grande a contribuição deles para o conhecimento das ciências naturais e etnográficas. Os povos da América e da África, talvez mesmo os da Ásia, viviam em culturas inferiores à europeia segundo eles. Queriam que esses “bárbaros” fossem batizados e aculturados para serem salvos na Terra e no Céu. Fora do seu ambiente, eles morriam logo. Um deles, no século XVI, fugiu à regra e viveu mais de 80 anos, transformando-se num europeu mestiço com família numerosa. 

É preciso criar uma ficção sobre a visão dos nativos sequestrados, já que eles não conseguiam compreender o mundo europeu, tanto quanto esse não conseguia compreender as culturas americanas. Iñe-e foi dada pelo próprio pai e, nas impressões criadas pela escritora, é enorme o desconforto da menina, que logo morreu. Para o europeu, os nativos da América estavam entre o animal e o branco. Havia a crença deste segundo que eles podiam se salvar, convertendo-se à cultura europeia.

A autora faz a escolha de narrar de forma onisciente. Só assim ela poderia entrar na alma da pequena índia. Buscando se posicionar numa visão multinaturalista, bem analisada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, ela pôde mergulhar no espírito das pessoas e dos animais. A ficção flui bem no princípio, mas a entrada de Josefa, uma brasileira dos dias de hoje, da fala mítica da onça na forma de animal e da menina, bem como escritos de europeus em epígrafe, quebram a unidade do romance. A inserção de falas de líderes das nações nativas de hoje também parecem soltas. Alcir Pécora escreveu que o romance fica entre o realismo fantástico e a narrativa fabular. 

Diante do pequeno rio Isar, a menina Iñe-e lhe devolve a vida que os europeus roubaram. Na visão multinaturalista, um rio tem voz. Ele se expressa com suas cheias, estiagens, poluição. Com apenas 293 km, afluente do Danúbio, parte da Áustria e da Alemanha se organizou em sua bacia. Para a menina, a fala do rio não é ouvida pelos europeus, mas por ela sim: “Isar das águas rasas. Isar, dura. Nasceu da estoicidade de um bloco de gelo, aprendeu a rugir com as feras da era glacial. Apenas tolera as intervenções que lhe fizeram, o derramamento de esgoto por tanto tempo, a construção do canal, as barragens. A revitalização de suas águas não apagou totalmente suas feridas.”

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